Uma
economia e sociedade de bem-estar
Preliminares
1. A multidimensionalidade do
bem-estar
2. O bem-estar coletivo e o
“Welfare State”
3. A enumeração e classificação
das componentes do bem-estar
4. Componentes materiais e de
qualidade de vida do bem-estar
Uma
economia e sociedade de bem-estar
Uma economia e sociedade de bem-estar é uma economia, e
sociedade, capaz de proporcionar aos seus membros condições de bem-estar
(apesar da redundância), isto é situações, sustentadas, nas quais eles se sentem
bem. O bem-estar tem conteúdos de natureza individual e conteúdos de natureza
societal (por vezes identificados com estados de felicidade). Sendo verdade que
todas as componentes do bem-estar têm como objeto o bem-estar individual é,
também, verdade que o bem-estar individual, para todos os indivíduos, não pode
ser obtido sem a intervenção de uma entidade exterior, por ex., o Estado. É
assim, porque os vários bem-estares individuais não são necessariamente
compatíveis entre si. A construção e desenvolvimento do Estado Social
ancoram-se nesta necessidade.
Preliminares
O que parece fácil de enunciar é, contudo, muito mais
difícil e complexo de caraterizar. Essa complexidade é uma consequência da sua
multidimensionalidade e da necessidade de garantir sustentabilidade à situação
de bem-estar. Um enunciado permite delimitar o objetivo a atingir, mas torna-se
indispensável, depois, identificar o caminho a seguir para a obtenção do bem-estar
o que, como veremos, não é tarefa fácil. Ou dito de outro modo, conhecida a
procura necessitamos de saber como se organiza a oferta para lhe dar resposta.
Para organizar a oferta torna-se necessário fixar objetivos intermédios que,
nem sempre, são compatíveis entre si. Estamos no domínio, por excelência, da
construção de consensualidades.
Por exemplo, existe indeterminação acerca do sentido da
causalidade entre desenvolvimento e bem-estar. Há quem entenda que o
desenvolvimento tem múltiplas finalidades, entre as quais está presente, em
primeiro lugar, a do bem-estar, mas devem ser relevadas outras: a ética, a
sustentabilidade, a coesão social, a proteção do ambiente, etc. Outros
consideram que o desenvolvimento tem um caráter instrumental em relação ao
bem-estar. O bem-estar é a finalidade última, mas terá que ser definido tendo
em conta as restrições decorrentes de objetivos intermédios (justiça, equidade na
repartição de rendimentos e patrimónios, preservação dos recursos,
solidariedade intergeracional, etc.). O texto que se segue adota esta segunda
perspetiva.
Vivemos num mundo limitado, mas muito diverso e
caracterizado por interdependências em múltiplas dimensões. Os progressos na
velocidade das comunicações e dos transportes mais vieram aprofundar as
interdependências, que sempre existiram, mas que anteriormente se manifestavam
de forma mais percetível ao nível das relações físicas (clima, por ex.). Hoje,
as interdependências não são apenas físicas mas, cada vez mais, percetíveis em
todas as tipologias de relações humanas. Utilizamos, para caraterizar esta
situação, a expressão “globalização”. É uma terminologia muito recente, que passou
a ser usada já na 2ª metade do Séc. XX, mas que procura caracterizar
comportamentos que conhecemos desde há muitos séculos, vide, as aventuras de Marco Polo, as relações comerciais das
repúblicas venezianas, os descobrimentos dos portugueses, etc. Hoje são bem
conhecidas algumas das suas manifestações negativas: agravamento das
desigualdades entre novos “Norte” e novos “Sul”; redistribuição assimétrica dos
ganhos, agora sob novas formas e altamente veiculada pela exacerbação
financeira á escala global; a importação de tecnologias inadequadas ao pleno
emprego dos fatores dos países importadores de tecnologia, etc.
1. A
multidimensionalidade do bem-estar
Regressemos à questão da multidimensionalidade. Quase que se
pode dizer que ela é uma consequência da existência de espaço, de tempo e de
Homens. Estes, tendo muito em comum, não podem, cada um deles, e apesar disso, deixar
de ser considerados como entes únicos.
A existência de comunalidades, por um lado, e de
especificidades, por outro, implica que, se outras restrições não existissem,
haveria tantas perceções do que é o bem-estar, quantas as pessoas, cada uma com
o seu ambiente (enquadramento) próprio. Não é, nem pode ser assim. O bem-estar
tem, certamente, dimensões subjetivas, mas que, só muito dificilmente, para não
dizer, nunca, serão mutuamente compatíveis. Para que se tornem compatíveis é
indispensável a intervenção de uma instância, de um sujeito político, que a todos
represente e que explicite uma função de bem-estar coletivo (função de
preferência social) que, não permitindo, eventualmente, a cada um, obter o
máximo de bem-estar, que desejaria, permite, a todos, obter o máximo de bem-estar
(bem comum), compatível com as opções societárias, num determinado momento, num
determinado território e tendo em conta as interdependências temporais,
territoriais e físicas que a sociedade entende dever respeitar. Assim se
compreende que o conteúdo preciso do bem-estar de uma sociedade tem um caráter
necessariamente efémero, porque ele é condicionado e condiciona o bem-estar de
outras sociedades que, com maior ou menor velocidade, estão em permanente
evolução.
2. O
bem-estar coletivo e o “Welfare State”
Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber o que
deve ser feito para que o máximo de bem-estar coletivo e individual seja
conseguido.
Podemos partir do pressuposto de que o desenvolvimento é o
suporte básico da criação do bem-estar (não pode haver bem-estar sem que haja
desenvolvimento). A resposta à questão “do que deve ser feito” está longe de
poder ser equacionada em termos de opções meramente tecnocráticas. Não sendo
dispensável a adoção de comportamentos de eficiência, a questão é, antes de
mais, de índole privilegiadamente política. É o soberano político que fixa os
objetivos a atingir; por ele também passam as metodologias a seguir para que
aqueles objetivos sejam obtidos. Os objetivos de eficiência estão subordinados e
devem ser ordenados em relação às opções de política (objetivos de nível
hierárquico superior) inicialmente fixadas, e têm que ser tomados como o melhor
caminho a seguir para que o objetivo político seja atingido. Nunca os objetivos
políticos, convenientemente consensualizados, devem ser sacrificados em favor
de um qualquer objetivo (intermédio) de eficiência. Por isso os objetivos
(preocupações) de eficiência são sempre instrumento da prossecução de objetivos
de nível superior.
Vale a pena, referir que se deve, igualmente, ter em conta
as interferências entre o estado da tecnologia material e o nível de bem-estar
que se pode atingir. Não sendo, sempre, necessariamente verdade, na maioria dos
casos, um maior progresso tecnológico permite obter maiores níveis de
bem-estar. No entanto, o que é verdade para um determinado território pode não
o ser para outros espaços adjacentes. Mais, na grande maioria dos casos,
verificou-se que o progresso tecnológico de certos territórios se fez à custa
da exploração e subdesenvolvimento de outros.
O “Welfare State”, o Estado de Bem-Estar, de inspiração
keynesiana, foi criado e desenvolveu-se na sequência da proliferação de
profundas manchas de pobreza surgidas com e após o fim da Segunda Grande
Guerra. Os Estados, de então, compreenderam que não seria possível, pela via do
mercado, dar resposta eficaz à situação de miséria que estava difundida.
Consensualizaram, então, organizar-se de modo a proporcionar a todos os
cidadãos e, em particular aos mais desprotegidos, níveis mínimos de bem-estar,
em particular nos domínios da educação, da saúde e da segurança de emprego. O
Estado de Bem-Estar, ou Estado Social tornou-se, assim, no mais poderoso
instrumento coletivo de redistribuição de riqueza e de rendimentos até aí
adotado. Como sabemos, chegamos a um tempo em que os donos do capital
entenderam dizer “basta” e recuperar o que julgam ter perdido nas décadas
passadas com aquela redistribuição.
3. A
enumeração e classificação das componentes do bem-estar
Pode dizer-se que são inumeráveis as “condicionantes”, que
também poderíamos designar por “componentes” do bem-estar. Daí a necessidade de
adotar alguma categorização para que possamos ordenar e não duplicar, ou tornar
contraditórios, os enunciados das componentes. Não é tarefa fácil porque, por
um lado, a identificação de categorias com níveis de exclusividade adequados exige
muito trabalho; por outro, tem de ser reconhecido que existem elevados níveis
de interdependência entre as várias componentes, tanto ao nível da horizontal (um
maior nível de educação permite o acesso a uma melhor qualidade de serviços de
saúde; ou, um melhor nível de saúde propicia maiores capacidades de
aprendizagem), como das hierarquias verticais (maiores níveis de inclusão
permitem uma maior consciência cívica e uma maior qualidade da vivência
democrática).
Conscientes destas limitações, nem por isso podemos deixar de
fazer algum caminho na direção da referida categorização. Para o efeito
procurar-se á aproveitar e integrar muita da reflexão já feita no âmbito do
Grupo Economia e Sociedade.
Duas grandes categorias agregadoras, já explicitadas, são as
de “Condições materiais de vida” e as de “Qualidade de vida”. Poderão vir a
manifestar-se dificuldades em integrar nestas duas categorias algumas das
componentes ou dimensões do bem-estar. Parece, no entanto, que elas são
suficientemente abrangentes para poder abarcar a grande maioria das dimensões
do bem-estar que se pretende reter. A este propósito, não podemos deixar de
mencionar o valioso trabalho sobre o Índice de Bem-estar para Portugal que o
INE divulgou recentemente e que pode ser encontrado aqui.
São categorias que não são completamente exclusivas, isto é,
nem sempre é possível classificar numa categoria, uma das componentes, sem que
se possa garantir que ela não extravasa para a outra categoria.
O bem-estar, num
determinado tempo e num determinado lugar tem, como se disse, um conteúdo
material e um conteúdo de qualidade de vida. No entanto, tanto um, como outro,
não podem ser identificados e prosseguidos, ignorando as interdependências que
existem entre os níveis de bem-estar, nesse tempo e nesse lugar, com os níveis
de bem-estar em outros tempos (passados ou futuros) e em outros lugares. É bem
conhecido que uma exploração intensiva de recursos, num determinado território
e numa determinada época pode eliminar condições de desenvolvimento e de
bem-estar futuras. Do mesmo modo é vasta a literatura e a experiência que nos
alerta para a circunstância de que elevados níveis de bem-estar em certos
territórios desenvolvidos têm sido conseguidos graças à expropriação dos
recursos dos povos e territórios do terceiro mundo.
Por outro lado, não basta enunciar e categorizar as
componentes do bem-estar para determinar o nível de bem-estar que vai ser
obtido. O nível de bem-estar depende das componentes, do seu volume, do modo
como são combinadas, umas com as outras, e da sequência de entrada nessa
combinação.
Importa, igualmente, referir que as componentes tanto o podem
ser de oferta, como de procura. Mais uma vez não basta enunciar como desejável
um determinado nível de procura, previamente consensualizado, para que ele seja
obtido. É preciso garantir que se obtém a oferta que a satisfaz e, para que
esta exista, tem que ser possível mobilizar os recursos que permitem produzir
os bens ou serviços que a integram.
4. Componentes
materiais e de qualidade de vida do bem-estar
Passemos, então, ao enunciado de algumas das componentes materiais
do bem-estar. Estas componentes materiais encontram-se polarizadas em torno do
que poderemos designar por dimensão económica do bem-estar: satisfação das
necessidades básicas; acesso aos bens públicos e privados indispensáveis a que
se possa garantir uma vida digna e saudável (saúde, educação, justiça,
segurança, habitação, etc.); solidariedade interterritorial; sustentabilidade
do ambiente e do desenvolvimento, etc.
Como já atrás se referiu não há uma completa independência
entre componentes materiais e componentes de qualidade de vida, mas a verdade é
que, para um mesmo nível de bem-estar material, o bem-estar global será tanto
maior quanto maior for o nível de qualidade de vida que puder ser garantido.
São múltiplos os itens que podem ser considerados como
favorecendo o nível de qualidade de vida. Pode acontecer que não sejam, sempre,
mutuamente compatíveis. Estes itens podem ser agrupados em duas subcategorias: de natureza social e de natureza
político-institucional.
Como pertencendo à primeira subcategoria poderemos
referenciar os objetivos de equidade e de equilíbrio na distribuição dos
recursos e dos rendimentos; a prossecução de elevados níveis de coesão e de
justiça social, a garantia da existência de igualdade de oportunidades para
acesso às condições de bem-estar (mobilidade social); a consideração do
objetivo de emprego como objetivo focal e não como variável de ajustamento; a
adoção, sempre, de comportamentos eticamente irrepreensíveis (antídoto
indispensável ao combate contra a corrupção), etc.
As condições de natureza institucional são as que dão
robustez ao funcionamento da sociedade organizada, garantindo, por essa via, o
enquadramento indispensável a que as condições materiais e sociais possam ser
eficientes na prossecução dos objetivos de bem-estar. Assim, a primeira de
todas deve ser o funcionamento democrático da sociedade, em que terão de ser respeitados
os direitos, as liberdades e as garantias individuais e constitucionais.
Pressupõe-se a existência de transparência e rigor no funcionamento das
instituições democráticas, públicas, ou não, bem como no comportamento dos seus
atores. A transparência e o rigor são mais facilmente garantidas quando existe
um projeto coletivo de sociedade mobilizador de todos os que dela fazem parte e
propiciador de elevado grau de participação e de inovação.
De entre as opções de sociedade merece destaque a forma como
a sociedade integra e acolhe as minorias, determinadas por razões de natureza
étnica ou outras.
Chegados aqui é facilmente percetível quão difícil se torna
caraterizar o bem-estar por via indutiva. É, no entanto, incontornável a
necessidade de dispor de critérios de controlo que permitam avaliar como é que medidas
de política adotadas afetam, positiva ou negativamente, o bem-estar da
sociedade ou de alguns dos grupos sociais que a compõem.
Apesar das dificuldades, elas não podem tolher-nos na
determinação de prosseguir o objetivo da obtenção de uma sociedade melhor.
Os esforços que têm vindo a ser feitos com vista a construir
índices estatísticos de bem-estar são, nesta perspetiva, de utilidade
inquestionável, muito embora devam poder ser considerados como instrumentos em permanente
evolução.
Nesta perspetiva, de necessidade de uma avaliação permanente
da evolução do bem-estar na sociedade portuguesa, e tendo em conta tudo o que
tem vindo a ser feito para diminuir o bem-estar da maioria dos portugueses,
através, nomeadamente, da destruição já realizada e das intenções manifestadas
de aniquilamento do Estado Social, pelo capital financeiro e pelo Estado que
segue as suas instruções, justifica-se que o Grupo de Economia e Sociedade
continue desperto e mobilizado em torno desta questão.
O horizonte da “saída da troika” justifica que se deva vir a
produzir uma reflexão e documento de nova avaliação da situação.
Lisboa, 25 Março 2014
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