Uma economia e sociedade de bem-estar
- Março 2014






Uma economia e sociedade de bem-estar

Preliminares

1. A multidimensionalidade do bem-estar
2. O bem-estar coletivo e o “Welfare State”
3. A enumeração e classificação das componentes do bem-estar
4. Componentes materiais e de qualidade de vida do bem-estar


 
Uma economia e sociedade de bem-estar

Uma economia e sociedade de bem-estar é uma economia, e sociedade, capaz de proporcionar aos seus membros condições de bem-estar (apesar da redundância), isto é situações, sustentadas, nas quais eles se sentem bem. O bem-estar tem conteúdos de natureza individual e conteúdos de natureza societal (por vezes identificados com estados de felicidade). Sendo verdade que todas as componentes do bem-estar têm como objeto o bem-estar individual é, também, verdade que o bem-estar individual, para todos os indivíduos, não pode ser obtido sem a intervenção de uma entidade exterior, por ex., o Estado. É assim, porque os vários bem-estares individuais não são necessariamente compatíveis entre si. A construção e desenvolvimento do Estado Social ancoram-se nesta necessidade.
Preliminares

O que parece fácil de enunciar é, contudo, muito mais difícil e complexo de caraterizar. Essa complexidade é uma consequência da sua multidimensionalidade e da necessidade de garantir sustentabilidade à situação de bem-estar. Um enunciado permite delimitar o objetivo a atingir, mas torna-se indispensável, depois, identificar o caminho a seguir para a obtenção do bem-estar o que, como veremos, não é tarefa fácil. Ou dito de outro modo, conhecida a procura necessitamos de saber como se organiza a oferta para lhe dar resposta. Para organizar a oferta torna-se necessário fixar objetivos intermédios que, nem sempre, são compatíveis entre si. Estamos no domínio, por excelência, da construção de consensualidades.

Por exemplo, existe indeterminação acerca do sentido da causalidade entre desenvolvimento e bem-estar. Há quem entenda que o desenvolvimento tem múltiplas finalidades, entre as quais está presente, em primeiro lugar, a do bem-estar, mas devem ser relevadas outras: a ética, a sustentabilidade, a coesão social, a proteção do ambiente, etc. Outros consideram que o desenvolvimento tem um caráter instrumental em relação ao bem-estar. O bem-estar é a finalidade última, mas terá que ser definido tendo em conta as restrições decorrentes de objetivos intermédios (justiça, equidade na repartição de rendimentos e patrimónios, preservação dos recursos, solidariedade intergeracional, etc.). O texto que se segue adota esta segunda perspetiva.

Vivemos num mundo limitado, mas muito diverso e caracterizado por interdependências em múltiplas dimensões. Os progressos na velocidade das comunicações e dos transportes mais vieram aprofundar as interdependências, que sempre existiram, mas que anteriormente se manifestavam de forma mais percetível ao nível das relações físicas (clima, por ex.). Hoje, as interdependências não são apenas físicas mas, cada vez mais, percetíveis em todas as tipologias de relações humanas. Utilizamos, para caraterizar esta situação, a expressão “globalização”. É uma terminologia muito recente, que passou a ser usada já na 2ª metade do Séc. XX, mas que procura caracterizar comportamentos que conhecemos desde há muitos séculos, vide, as aventuras de Marco Polo, as relações comerciais das repúblicas venezianas, os descobrimentos dos portugueses, etc. Hoje são bem conhecidas algumas das suas manifestações negativas: agravamento das desigualdades entre novos “Norte” e novos “Sul”; redistribuição assimétrica dos ganhos, agora sob novas formas e altamente veiculada pela exacerbação financeira á escala global; a importação de tecnologias inadequadas ao pleno emprego dos fatores dos países importadores de tecnologia, etc.
1. A multidimensionalidade do bem-estar

Regressemos à questão da multidimensionalidade. Quase que se pode dizer que ela é uma consequência da existência de espaço, de tempo e de Homens. Estes, tendo muito em comum, não podem, cada um deles, e apesar disso, deixar de ser considerados como entes únicos.

A existência de comunalidades, por um lado, e de especificidades, por outro, implica que, se outras restrições não existissem, haveria tantas perceções do que é o bem-estar, quantas as pessoas, cada uma com o seu ambiente (enquadramento) próprio. Não é, nem pode ser assim. O bem-estar tem, certamente, dimensões subjetivas, mas que, só muito dificilmente, para não dizer, nunca, serão mutuamente compatíveis. Para que se tornem compatíveis é indispensável a intervenção de uma instância, de um sujeito político, que a todos represente e que explicite uma função de bem-estar coletivo (função de preferência social) que, não permitindo, eventualmente, a cada um, obter o máximo de bem-estar, que desejaria, permite, a todos, obter o máximo de bem-estar (bem comum), compatível com as opções societárias, num determinado momento, num determinado território e tendo em conta as interdependências temporais, territoriais e físicas que a sociedade entende dever respeitar. Assim se compreende que o conteúdo preciso do bem-estar de uma sociedade tem um caráter necessariamente efémero, porque ele é condicionado e condiciona o bem-estar de outras sociedades que, com maior ou menor velocidade, estão em permanente evolução.
2. O bem-estar coletivo e o “Welfare State”

Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber o que deve ser feito para que o máximo de bem-estar coletivo e individual seja conseguido.

Podemos partir do pressuposto de que o desenvolvimento é o suporte básico da criação do bem-estar (não pode haver bem-estar sem que haja desenvolvimento). A resposta à questão “do que deve ser feito” está longe de poder ser equacionada em termos de opções meramente tecnocráticas. Não sendo dispensável a adoção de comportamentos de eficiência, a questão é, antes de mais, de índole privilegiadamente política. É o soberano político que fixa os objetivos a atingir; por ele também passam as metodologias a seguir para que aqueles objetivos sejam obtidos. Os objetivos de eficiência estão subordinados e devem ser ordenados em relação às opções de política (objetivos de nível hierárquico superior) inicialmente fixadas, e têm que ser tomados como o melhor caminho a seguir para que o objetivo político seja atingido. Nunca os objetivos políticos, convenientemente consensualizados, devem ser sacrificados em favor de um qualquer objetivo (intermédio) de eficiência. Por isso os objetivos (preocupações) de eficiência são sempre instrumento da prossecução de objetivos de nível superior.

Vale a pena, referir que se deve, igualmente, ter em conta as interferências entre o estado da tecnologia material e o nível de bem-estar que se pode atingir. Não sendo, sempre, necessariamente verdade, na maioria dos casos, um maior progresso tecnológico permite obter maiores níveis de bem-estar. No entanto, o que é verdade para um determinado território pode não o ser para outros espaços adjacentes. Mais, na grande maioria dos casos, verificou-se que o progresso tecnológico de certos territórios se fez à custa da exploração e subdesenvolvimento de outros.

O “Welfare State”, o Estado de Bem-Estar, de inspiração keynesiana, foi criado e desenvolveu-se na sequência da proliferação de profundas manchas de pobreza surgidas com e após o fim da Segunda Grande Guerra. Os Estados, de então, compreenderam que não seria possível, pela via do mercado, dar resposta eficaz à situação de miséria que estava difundida. Consensualizaram, então, organizar-se de modo a proporcionar a todos os cidadãos e, em particular aos mais desprotegidos, níveis mínimos de bem-estar, em particular nos domínios da educação, da saúde e da segurança de emprego. O Estado de Bem-Estar, ou Estado Social tornou-se, assim, no mais poderoso instrumento coletivo de redistribuição de riqueza e de rendimentos até aí adotado. Como sabemos, chegamos a um tempo em que os donos do capital entenderam dizer “basta” e recuperar o que julgam ter perdido nas décadas passadas com aquela redistribuição.
 
3. A enumeração e classificação das componentes do bem-estar

Pode dizer-se que são inumeráveis as “condicionantes”, que também poderíamos designar por “componentes” do bem-estar. Daí a necessidade de adotar alguma categorização para que possamos ordenar e não duplicar, ou tornar contraditórios, os enunciados das componentes. Não é tarefa fácil porque, por um lado, a identificação de categorias com níveis de exclusividade adequados exige muito trabalho; por outro, tem de ser reconhecido que existem elevados níveis de interdependência entre as várias componentes, tanto ao nível da horizontal (um maior nível de educação permite o acesso a uma melhor qualidade de serviços de saúde; ou, um melhor nível de saúde propicia maiores capacidades de aprendizagem), como das hierarquias verticais (maiores níveis de inclusão permitem uma maior consciência cívica e uma maior qualidade da vivência democrática).

Conscientes destas limitações, nem por isso podemos deixar de fazer algum caminho na direção da referida categorização. Para o efeito procurar-se á aproveitar e integrar muita da reflexão já feita no âmbito do Grupo Economia e Sociedade.

Duas grandes categorias agregadoras, já explicitadas, são as de “Condições materiais de vida” e as de “Qualidade de vida”. Poderão vir a manifestar-se dificuldades em integrar nestas duas categorias algumas das componentes ou dimensões do bem-estar. Parece, no entanto, que elas são suficientemente abrangentes para poder abarcar a grande maioria das dimensões do bem-estar que se pretende reter. A este propósito, não podemos deixar de mencionar o valioso trabalho sobre o Índice de Bem-estar para Portugal que o INE divulgou recentemente e que pode ser encontrado aqui.

São categorias que não são completamente exclusivas, isto é, nem sempre é possível classificar numa categoria, uma das componentes, sem que se possa garantir que ela não extravasa para a outra categoria.

O bem-estar, num determinado tempo e num determinado lugar tem, como se disse, um conteúdo material e um conteúdo de qualidade de vida. No entanto, tanto um, como outro, não podem ser identificados e prosseguidos, ignorando as interdependências que existem entre os níveis de bem-estar, nesse tempo e nesse lugar, com os níveis de bem-estar em outros tempos (passados ou futuros) e em outros lugares. É bem conhecido que uma exploração intensiva de recursos, num determinado território e numa determinada época pode eliminar condições de desenvolvimento e de bem-estar futuras. Do mesmo modo é vasta a literatura e a experiência que nos alerta para a circunstância de que elevados níveis de bem-estar em certos territórios desenvolvidos têm sido conseguidos graças à expropriação dos recursos dos povos e territórios do terceiro mundo.

Por outro lado, não basta enunciar e categorizar as componentes do bem-estar para determinar o nível de bem-estar que vai ser obtido. O nível de bem-estar depende das componentes, do seu volume, do modo como são combinadas, umas com as outras, e da sequência de entrada nessa combinação.
Importa, igualmente, referir que as componentes tanto o podem ser de oferta, como de procura. Mais uma vez não basta enunciar como desejável um determinado nível de procura, previamente consensualizado, para que ele seja obtido. É preciso garantir que se obtém a oferta que a satisfaz e, para que esta exista, tem que ser possível mobilizar os recursos que permitem produzir os bens ou serviços que a integram.

4. Componentes materiais e de qualidade de vida do bem-estar

Passemos, então, ao enunciado de algumas das componentes materiais do bem-estar. Estas componentes materiais encontram-se polarizadas em torno do que poderemos designar por dimensão económica do bem-estar: satisfação das necessidades básicas; acesso aos bens públicos e privados indispensáveis a que se possa garantir uma vida digna e saudável (saúde, educação, justiça, segurança, habitação, etc.); solidariedade interterritorial; sustentabilidade do ambiente e do desenvolvimento, etc.

Como já atrás se referiu não há uma completa independência entre componentes materiais e componentes de qualidade de vida, mas a verdade é que, para um mesmo nível de bem-estar material, o bem-estar global será tanto maior quanto maior for o nível de qualidade de vida que puder ser garantido.

São múltiplos os itens que podem ser considerados como favorecendo o nível de qualidade de vida. Pode acontecer que não sejam, sempre, mutuamente compatíveis. Estes itens podem ser agrupados em duas subcategorias: de natureza social e de natureza político-institucional.

Como pertencendo à primeira subcategoria poderemos referenciar os objetivos de equidade e de equilíbrio na distribuição dos recursos e dos rendimentos; a prossecução de elevados níveis de coesão e de justiça social, a garantia da existência de igualdade de oportunidades para acesso às condições de bem-estar (mobilidade social); a consideração do objetivo de emprego como objetivo focal e não como variável de ajustamento; a adoção, sempre, de comportamentos eticamente irrepreensíveis (antídoto indispensável ao combate contra a corrupção), etc.

As condições de natureza institucional são as que dão robustez ao funcionamento da sociedade organizada, garantindo, por essa via, o enquadramento indispensável a que as condições materiais e sociais possam ser eficientes na prossecução dos objetivos de bem-estar. Assim, a primeira de todas deve ser o funcionamento democrático da sociedade, em que terão de ser respeitados os direitos, as liberdades e as garantias individuais e constitucionais. Pressupõe-se a existência de transparência e rigor no funcionamento das instituições democráticas, públicas, ou não, bem como no comportamento dos seus atores. A transparência e o rigor são mais facilmente garantidas quando existe um projeto coletivo de sociedade mobilizador de todos os que dela fazem parte e propiciador de elevado grau de participação e de inovação.

De entre as opções de sociedade merece destaque a forma como a sociedade integra e acolhe as minorias, determinadas por razões de natureza étnica ou outras.

Chegados aqui é facilmente percetível quão difícil se torna caraterizar o bem-estar por via indutiva. É, no entanto, incontornável a necessidade de dispor de critérios de controlo que permitam avaliar como é que medidas de política adotadas afetam, positiva ou negativamente, o bem-estar da sociedade ou de alguns dos grupos sociais que a compõem.

Apesar das dificuldades, elas não podem tolher-nos na determinação de prosseguir o objetivo da obtenção de uma sociedade melhor.

Os esforços que têm vindo a ser feitos com vista a construir índices estatísticos de bem-estar são, nesta perspetiva, de utilidade inquestionável, muito embora devam poder ser considerados como instrumentos em permanente evolução.

Nesta perspetiva, de necessidade de uma avaliação permanente da evolução do bem-estar na sociedade portuguesa, e tendo em conta tudo o que tem vindo a ser feito para diminuir o bem-estar da maioria dos portugueses, através, nomeadamente, da destruição já realizada e das intenções manifestadas de aniquilamento do Estado Social, pelo capital financeiro e pelo Estado que segue as suas instruções, justifica-se que o Grupo de Economia e Sociedade continue desperto e mobilizado em torno desta questão.
O horizonte da “saída da troika” justifica que se deva vir a produzir uma reflexão e documento de nova avaliação da situação.

Lisboa, 25 Março 2014

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