Desigualdades, Modelo Económico, Democracia
- Tomada de Posição do Grupo Economia e Sociedade

Justificação


1. Num tempo em que se projectam (e já estão em curso!) reformas estruturais de vulto no aparelho do estado e na reconfiguração do modelo económico e social, importa, mais do que nunca, reflectir sobre os objectivos por elas visados e avaliar a bondade desses objectivos e a assertividade dos instrumentos propostos para os alcançar. Não pode silenciar-se ou subestimar-se a necessidade de uma rigorosa avaliação, do ponto de vista da equidade na repartição dos custos e dos benefícios inerentes às diferentes propostas apresentadas.

2. Trata-se de uma reflexão que, sendo essencial em democracia, tende, no entanto, a ser silenciada pelo debate político corrente, uma vez que este tem sido conduzido a nível governamental, de modo a evidenciar as condicionantes e as restrições de ordem financeira com que se justificam as reformas e a tomar como inevitáveis certos rumos da política económica negociada com os credores. Tão pouco encontramos oposições que tenham sido capazes de formular alternativas coerentes nos seus fins e suficientemente robustas do ponto de vista da respectiva exequibilidade.

3. Com esta reflexão queremos contribuir para o melhor conhecimento acerca da situação que, presentemente, se vive no País no que se refere à desigualdade crescente, manifestada nas suas múltiplas vertentes e às consequências que daí decorrem para a vida das pessoas, o bem-estar colectivo, a economia, a coesão social e o modelo de sociedade que desejamos.

4. Movem-nos razões de ordem ética e cívica, mas também a convicção firme, sustentada no conhecimento científico disponível, que permite afirmar que a desigualdade é, simultaneamente, um obstáculo ao crescimento da economia e, mais amplamente, ao desenvolvimento socioeconómico, bem como, para além de certos limites, constitui uma ameaça à coesão social e à democracia.

Assumimos que as desigualdades são factor de instabilidade no processo de desenvolvimento económico, uma vez que este só será mais sustentado se todos os cidadãos tiverem a noção de que existe equidade na repartição da riqueza criada e, assim, se disponibilizem para nele participarem.

Portugal: um País muito desigual


5. Portugal é, entre os países da EU-15 ou no conjunto mais alargado dos países da OCDE, um dos casos em que se verifica maior desigualdade na repartição do rendimento, evidenciando também indicadores de incidência e severidade da pobreza mais elevados, quando comparados com os valores observados naqueles conjuntos de países e, mais ainda, em relação a alguns países de referência.

6. Por outro lado, as políticas ditas de austeridade, apresentadas como visando, essencialmente, a correcção do défice das contas públicas, têm sido conduzidas de tal modo que são já patentes alguns dos seus efeitos no agravamento da desigualdade na repartição da riqueza e do rendimento, tanto pela via do aumento do desemprego, da precariedade do vínculo laboral e dos baixos salários, como devido a políticas fiscais menos progressivas e a prestações sociais mais reduzidas, não esquecendo os casos de enriquecimento ilícito alcançado pela via especulativa nas transacções financeiras e outras não abrangidas por tributação adequada.

Também os aumentos de preços de bens básicos, com destaque para a água, a energia, os serviços de saúde e os transportes públicos, se traduzem em maior desigualdade, uma vez que é comparativamente mais elevado o respectivo peso nos orçamentos familiares mais baixos.

O mesmo se poderá dizer do aumento do IVA em relação a bens de primeira necessidade.

7. Ainda é difícil avaliar o impacto que a recente lei do arrendamento irá ter em termos de desigualdade na repartição do rendimento, mas é, certamente, um factor a ter em conta.

8. A desigualdade não se traduz apenas na distribuição do rendimento disponível das famílias; é fenómeno que se observa, igualmente, em outras vertentes, nomeadamente, em termos territoriais, oportunidades de educação ou de acesso aos cuidados de saúde, ao emprego, ou à justiça, concentração de património, etc.

9. Na análise da desigualdade, merece também destaque o facto de que se vem registando uma acentuada redução do peso das remunerações do trabalho no conjunto do rendimento nacional, com correspondente aumento da parcela das remunerações do capital.

10. A descrição da desigualdade exige, por último, uma referência específica tanto às situações de pobreza (que se tem agravado em incidência e severidade) como à concentração do rendimento e da riqueza nos percentis mais elevado.

Superar preconceitos


11. Face a estas constatações, seria de esperar que a desigualdade merecesse um maior escrutínio por parte da consciência colectiva em geral, por parte dos partidos políticos e por parte de outras forças políticas. Porém, vem de longa data o facto de os portugueses revelarem uma fraca aversão à desigualdade ou seja há como que uma aceitação passiva e resignada das desigualdades que se vão firmando e reproduzindo, considerando-as como fatalidade ou até como factor de progresso. Contudo, uma tal atitude está a mudar: por efeito da maior propensão à mobilidade social, nomeadamente entre a população mais jovem; melhor conhecimento científico acerca desta realidade e das causas que lhe subjazem; e uma mais ampla informação através da comunicação social.

Para esta mudança de mentalidade, também estará a contribuir o facto de o desemprego, a perda de rendimento, a redução de prestações sociais, a fiscalidade e outros aspectos da desigualdade estarem a afectar negativamente grupos sociais que, até agora, não conheciam tais dificuldades.

Ainda assim, consideramos necessário desmontar alguns dos preconceitos mais generalizados que explicam a excessiva tolerância dos portugueses em relação à desigualdade real que se verifica no País.

12. O pressuposto mais comum é o de que a desigualdade é um fenómeno natural e decorre da necessidade de premiar os mais capazes e de alimentar a economia com estímulos de ordem material.

Sem refutar, inteiramente, esta afirmação, importa, todavia, assinalar que nem sempre o mérito individual está na base do enriquecimento pessoal, pois, em muitos casos, esse enriquecimento pouco ou nada deve a capacidades de empreendorismo e inovação ao serviço da comunidade, mas resulta, de especulação ou de situações de rentismo toleradas pelos poderes públicos e que são prejudiciais ao desenvolvimento da economia. De qualquer modo, há limites para a desigualdade que não devem ser excedidos por razões éticas, políticas e económicas.

13. Por razões éticas, que remetem para o fundamento da dignidade da pessoa humana; para o reconhecimento universal dos direitos humanos, incluindo os direitos sociais e económicos; para a prioridade do destino universal dos bens sobre o direito à propriedade privada; para o imperativo da satisfação das necessidades básicas de todas as pessoas; para a solidariedade entre os humanos; para a necessidade de assegurar a sustentabilidade ambiental e a justiça inter-geracional.

14. Por razões políticas, que decorrem de vínculos constitucionais e de contratos sociais nos quais se estabelecem princípios e normas de salvaguarda da igualdade de oportunidades, universalidade de acesso a bens públicos, designadamente educação, saúde, justiça, segurança e protecção social.

O desrespeito e incumprimento destes compromissos constitucionais constituem uma séria ameaça à coesão social e põem em risco a democracia, nomeadamente quando a desigualdade resulta da captura do poder político pelo poder económico e financeiro.

15. Por razões económicas, pois, ao contrário do que, por vezes, se afirma e propala, a desigualdade na repartição do rendimento prejudica, seriamente, o potencial desenvolvimento económico de um país ou região, uma vez que afecta a procura, tanto de bens de consumo como de investimento, prejudicando a produção de bens e serviços para o mercado interno.

A desigualdade tem também consequências na mobilidade social, na valorização e qualificação dos recursos humanos, no nível de saúde das populações, na cultura e na capacitação dos cidadãos em matéria de inovação e adaptação às mudanças tecnológicas e organizacionais das empresas e das administrações, impactos estes que são relevantes para o modelo, o ritmo e a sustentabilidade do desenvolvimento económico.

Tão pouco podemos ignorar que as desigualdades prejudicam os recursos financeiros postos à disposição dos poderes públicos, obstando a que estes assegurem, adequadamente, as infra-estruturas de base e os direitos fundamentais dos cidadãos, dado que os mais ricos tendem a aplicar os seus recursos recorrendo a esquemas de engenharia financeira ou colocando-os em bancos sediados no estrangeiro e, não raro, recorrem à fuga de capitais para paraísos fiscais, evitando, por estas vias, a justa e devida contribuição para as receitas públicas.


Que fazer?


16. Em Portugal, vivemos tempos de grande pessimismo em relação ao futuro, o que torna propícia a corrida à apropriação indevida e voraz do rendimento disponível, pela via de remunerações abusivas e bónus excessivos que sobrecarregam os custos das empresas ou pelo recurso à especulação financeira, não raro acompanhada de fuga aos impostos ou de exportação de capitais.

Esta situação não tem encontrado travão eficaz por parte da governação e demais poderes públicos que, ao invés, a toleram ou mesmo a favorecem, através de medidas fiscais de fraca progressividade tributária, o que, por sua vez, se reflecte em cortes na despesa pública traduzidos em diminuição das remunerações dos funcionários públicos, do valor das pensões e das prestações sociais.

17. Por outro lado, algumas reformas introduzidas na legislação laboral, bem como o enfraquecimento da contratação colectiva, têm conduzido, no actual contexto de elevado desemprego, à diminuição dos salários reais em muitas profissões e sectores de actividade e, de modo geral, ao agravamento do leque salarial. O baixo montante do salário mínimo e a sua fraca actualização nos últimos anos constitui igualmente um factor de agravamento da desigualdade e, em algumas situações familiares, um risco agravado de pobreza.

18. A atenção do debate político (governo e oposição) tem-se centrado na preocupação obsessiva com a redução do desequilíbrio das contas públicas, descurando aquilo que se afigura essencial e prioritário: a definição de uma estratégia de desenvolvimento assente em finalidades claras de aumento da produção nacional ambientalmente sustentável e de investimento público, em ordem à satisfação das necessidades básicas da população e ao pleno emprego dos recursos humanos; à correcção das desigualdades e promoção da igualdade de oportunidades em matéria de direitos básicos à saúde, à educação, à justiça, à segurança e à protecção social.

19. Impõe-se uma estratégia que vise a inovação e a economia do conhecimento, a sustentabilidade ambiental e a coesão social; uma estratégia que respeite o quadro constitucional dos direitos e garantias, pilar fundamental da coesão social e da democracia; uma estratégia que aponte como objectivo explícito reduzir a desigualdade, erradicar a pobreza e melhorar a qualidade de vida de todos os cidadãos.

13 Fevereiro 2013
Grupo “Economia e Sociedade”
Do Grupo “Economia e Sociedade” fazem parte: António Natalino Martins; Carlos Farinha Rodrigues; Cláudio Teixeira; Deolinda Machado; Eduarda Ribeiro; Elsa Ferreira; Henriqueta Duarte; João Lourenço; Isabel Roque de Oliveira; Manuel Brandão Alves; Manuela Silva; Maria Emília Castanheira; Maria Flamínia Ramos; Maria José Melo Antunes.

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